Dias que nunca acabaram

Às vezes parece que as nossas vidas e a história, em vários aspectos, são feitas por momentos tão marcantes, incisivos e, até mesmo, traumatizantes. Alguns dias parecem que nunca se acabaram e passam por nossas mentes e pelo imaginário coletivo em uma espécie de looping infinito.

14 de Maio de 1888, por exemplo, dá para ser chamado de Dia da Ressaca, foi o dia que milhões de escravizados recém libertos perceberam que a liberdade veio agregada de uma cidadania de segunda classe. Este legado permanece até hoje para mais da metade da população brasileira, que ainda vive um eterno looping de avanços e recuos na conquista pela verdadeira liberdade.

31 de Março de 1964 é um dia que nunca acabou, num ano que já ganhou essa alcunha, de nunca ter acabado. A data mergulhou o Brasil numa ditadura que habita, de diversas maneiras no inconsciente brasileiro, cujos reflexos parecem ser ainda mais acintosos no polarizado Brasil dos últimos anos.

Mas dias intermináveis também podem ser feitos de boas lembranças, que, na minha vida é marcada pelo caso do 4 de Julho. Se para os americanos a data significa independência, ao adicionar o ano de 2012, além de mim, milhões de corinthianos vão indubitavelmente narrar cada minuto daquele dia mítico, quando o Corinthians finalmente conquistou a América.

Destaque para os segundos que parecem ter durado horas, aos 27 minutos do segundo tempo, entre o momento que Emerson Sheik interceptou um passe do zagueiro do Boca, conduziu a bola pelo campo adversário até balançar as redes com um chute rasteiro no canto do goleiro. Para mim, este dia é um looping infinito de alegria e explosão no Pacaembú.

Contudo hoje faz 30 anos de um dia que não acabou para mim e, creio que para milhões de brasileiros. Eu tinha 7 anos e junto com meus pais nos sentamos em frente à tv na sala de casa, para, como sempre, assistir mais uma corrida do Ayrton. Era assim, com essa intimidade que chamávamos o piloto tricampeão mundial de Fórmula 1.

Com poucas voltas no Grande Prêmio de San Marino o brasileiro passou reto na Tamburello em altíssima velocidade e bateu contra o muro. Após angustiosos segundos silêncio nada aconteceu até que o icônico capacete se mexeu no cockpit, lembro do Galvão Bueno falar “Mexe a cabeça Ayrton Senna”, o narrador parecia ter esperança, já em casa minha mãe foi pessimista “Sei não…”.

Seguiram-se então longos e eternos minutos de atendimento médico, imagens que pareciam ser de sangue na pista e a retirada do herói brasileiro num helicóptero. Foi quando desligamos a tv e saí com meu pai para outra tradição de domingo: ir à feira, comprar algumas frutas, comer pastel e tomar um caldo-de-cana. No caminho, perguntei ao meu pai o que iria acontecer com o Senna, quando recebi uma resposta evasiva “Ele é um atleta, é forte”.

Na época, sem internet, as notícias chegavam através das tradicionais rádios e canais de televisão, todos estávamos de sobreaviso. Meus pais e eu nos deslocamos de São Bernardo do Campo, onde morávamos, para a Vila Palmares, em Santo André, bairro que meu pai foi criado e onde moravam algumas de minhas tias e minha avó.

Eu batia bola com meus primos na rua, quando a icônica entrada do Plantão de jornalismo da Globo anunciou a morte de Ayrton Senna da Silva no dia 1º de Maio de 1994, um dia que nunca acabou.

Eu era muito novo e, de fato, pouco ou quase nada lembro dos seus títulos, mas tenho lembranças de momentos icônicos: uma corrida em Mônaco que venceu a pressão do arrojado Nigel Mansell, que tinha um carro muito melhor e saiu exausto de sua Willians. Inesquecível também a vitória em Interlagos, Senna foi carregado pelos brasileiros até o pódio, depois descobriríamos que a vitória foi ainda maior, pois Ayrton estava com o câmbio quebrado e correu as últimas 7 voltas penas com a 6ª marcha. Impressionante também foi “a melhor volta da história” no GP da Europa, Senna ultrapassou Schumacher, Karl Wendlinger, Damon Hill e Alain Prost debaixo da chuva e em menos de um minuto e meio.

Tais cenas juntam-se às horas iniciais do 1º de Maio de 1994 e formam um looping em minha mente. O mito do herói brasileiro que conquistou o mundo, que liderava seus pares, era agressivo (às vezes beirando a irresponsabilidade), que falava sobre tudo e lutava até o limite para chegar à vitória.

Ayrton Senna do Brasil (da Silva), junto com Pelé, talvez tenha sido uma das poucas pessoas que simbolizam os sonhos de um Brasil que lidera, luta e vence. Talvez por isso o 1º de Maio de 1994, 30 anos depois, ainda não tenha acabado e seja um misto de tristeza, por tudo o que deixamos de viver e de lembranças míticas, que nos dá orgulho e alegria.

O que você acha? deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *